Função social da empresa, rescisão contratual, conceitos, OMS
1. INTRODUÇÃO
Atualmente, a embriaguez habitual/alcoolismo, antes vista como uma fraqueza moral, é reconhecida como doença crônica pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
O exagero no consumo de bebidas alcoólicas é responsável por grande parte de atos violentos e acidentes variados, tanto domésticos quanto no dia a dia das pessoas.
A ingestão da bebida, além de afetar o próprio indivíduo, repercute também em todo seu círculo de convivência, interferindo em suas relações interpessoais e prejudicando a execução de suas atividades profissionais.
2. CONCEITO DE EMBRIAGUEZ
A embriaguez pode ser entendida como o estado causado pela ingestão de bebidas alcoólicas, que provoca a alteração do discernimento e do estado psicológico de uma pessoa. Afeta os sentidos e coloca em risco sua integridade física e a de terceiros.
O uso constante, descontrolado e progressivo de bebidas alcoólicas pode levar o indivíduo à desenvolver o alcoolismo, que é a dependência do álcool, considerado como uma doença e também uma “síndrome da dependência do álcool”.
O abuso do álcool também pode acarretar diversas consequências físicas, pois compromete o bom funcionamento do organismo, além de trazer prejuízos para as relações sociais e profissionais do indivíduo, conforme dito no tópico anterior.
Além disso, não se pode perder de vista as consequências da embriaguez no ambiente de trabalho, haja vista que o álcool provoca diminuição dos reflexos e reduz a capacidade de percepção e cognição do indivíduo, aumentando os riscos de acidentes de trabalho e de conflitos dentro da empresa.
Contudo, há que se distinguir a embriaguez ocasional do alcoolismo, já que este último é considerado uma patologia, e, assim sendo, não caberia a dispensa por justa causa, conforme entendimento da doutrina e jurisprudência.
EMBRIAGUEZ OCASIONAL | ALCOOLISMO |
Artigo 482, alínea “f”, da CLT | Artigo 482, alínea “f”, da CLT |
Não considerado patologia (doença) | Considerado patologia (doença) |
Cabe dispensa por justa causa (artigo 482 da CLT) | Não cabe dispensa por justa causa (artigo 482 da CLT) |
3. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS)
A OMS, agência especializada subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU), foi criada em 1948 com o objetivo principal de desenvolver o nível de saúde de todos os povos. Ela é responsável pela publicação da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), que encontra-se na sua 11ª edição (CID-11) no Brasil. No entanto, essa edição ainda está sendo traduzida e espera-se a aplicação a partir de janeiro de 2025 (“Ministério da Saúde coordena tradução do novo Código Internacional de Doenças para a língua portuguesa”, 26.07.2022).
De acordo com a Biblioteca Virtual em Saúde (2004), do Ministério da Saúde, alcoolismo é:
[…] a dependência do indivíduo ao álcool, considerada doença pela Organização Mundial da Saúde. O uso constante, descontrolado e progressivo de bebidas alcoólicas pode comprometer seriamente o bom funcionamento do organismo, levando a conseqüências irreversíveis. A pessoa dependente do álcool, além de prejudicar a sua própria vida, acaba afetando a sua família, amigos e colegas de trabalho. |
Nesse sentido, tendo em vista a responsabilidade social da empresa, se reconhecida a existência da doença, o procedimento correto a ser adotado pelo empregador é o encaminhamento do empregado para assistência médica adequada e, consequentemente, afastamento pelo INSS para percepção de auxílio por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença), após o pagamento dos 15 primeiros dias do atestado médico, nos termos do artigo 75 do Decreto n° 3.048/99.
Portanto, o empregador deve identificar se o empregado faz uso abusivo do álcool de forma eventual e imprudente ou se trata da doença, objetivando aplicar de forma inequívoca a dispensa com ou sem justa causa.
3.1. Embriaguez habitual ou embriaguez em serviço
O artigo 482, alínea “f”, da CLT dispõe que a embriaguez habitual e a embriaguez ao serviço constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador.
No entanto, é imprescindível que se faça a distinção entre embriaguez habitual, que corresponde à doença alcoolismo, e a embriaguez em serviço.
A embriaguez habitual, em que fica reconhecida a existência de uma enfermidade, envolve uma vontade incontrolável de consumir bebidas alcoólicas; a ingestão ocorre reiteradamente, de forma contínua, e causa transtornos mentais e comportamentais.
Tendo em vista o reconhecimento do alcoolismo como doença crônica, é uma situação que requer tratamento, e não punição.
Por sua vez, a embriaguez eventual ou em serviço constitui ato punível e se verifica quando há o consumo imprudente de bebidas alcoólicas, de maneira ocasional, necessariamente dentro do ambiente de trabalho ou durante sua jornada, ou, ainda, quando se apresenta embriagado para trabalhar.
É inegável que, qualquer que seja a hipótese, a apresentação do empregado ao trabalho sob influência do álcool afeta diretamente o exato cumprimento das atividades que lhe foram confiadas, acarretando prejuízos ao empregador bem como a quebra da confiança que deve permear a relação de trabalho.
Interessante mencionar que tramitou no Senado Federal o Projeto de Lei n° 083/2012, que tinha por objeto excluir a embriaguez habitual, quando comprovado clinicamente o alcoolismo crônico, das hipóteses que motivam a dispensa sem justa causa do empregado, além de disciplinar a demissão e estabelecer garantia provisória de emprego ao alcoolista. Contudo, o Projeto de Lei foi arquivado ao final da legislatura do senador que fez sua propositura, em dezembro de 2018.
4. SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL
A saúde é assegurada como direito fundamental de todos, conforme previsão expressa no artigo 6° da Constituição Federal:
Art. 6° São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. |
Já o artigo 196 da Constituição Federal dispõe que:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. |
Nesse sentido, considerando que a OMS classifica a embriaguez habitual como doença crônica, que influi diretamente na capacidade do indivíduo de discernir sobre seus atos, é responsabilidade da empresa e do Estado proporcionar ao trabalhador tratamento adequado.
Assim, o procedimento correto seria a empresa encaminhar o trabalhador, a partir do 16° dia de afastamento por atestado médico, para a Previdência Social, exceto o doméstico, com a consequente suspensão do contrato de trabalho por auxílio por incapacidade temporária, conforme artigo 72, inciso I, e 75, e parágrafos, do Decreto n° 3.048/99.
5. FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
O conceito de função social da empresa está relacionado com a idéia de que, além de visar à atividade fim e à obtenção de lucro, deve também se preocupar em assegurar os direitos da sociedade, juntamente com o Estado.
Dessa forma, é dever social da empresa, reconhecendo a existência da patologia, optar pelo afastamento do empregado para que se submeta a tratamento médico ao invés de optar pela resolução, ainda que sem justa causa, do contrato de emprego, medida nitidamente extrema.
Assim, visto que o alcoolismo trata-se de uma doença grave, podendo ser fatal, a medida que se impõe é o tratamento, e não a punição.
5.1. Rescisão sem justa causa
A rescisão sem justa causa é uma modalidade de encerramento da relação de trabalho sem razão legal que a justifique, podendo se dar de acordo com a vontade e conveniência das partes.
Assim, via de regra, o empregador pode rescindir o contrato de trabalho com o empregado sem apresentar justo motivo para isso.
No entanto, quando motivada pela embriaguez, não é recomendado que se proceda a rescisão contratual, tendo em vista que o indivíduo acometido pelo alcoolismo sequer tem consciência de seus próprios atos.
Dessa forma, a empresa precisa exercer o seu papel social por meio de medidas efetivas para recuperação do empregado, como encaminhá-lo para tratamento médico adequado.
Entretanto, se o empregado se recusar em realizar o tratamento, o empregador poderá rescindir o contrato de trabalho, mas nesse caso orienta-se que seja rescindido sem justa causa.
Ademais, a Norma Regulamentadora 07 (NR 07), mais especificamente em seu tópico 7.5.6, inciso “e”, trata como obrigatória a realização do exame demissional e a aptidão ao desligamento para que possa ser concretizada a rescisão contratual, no entanto a empresa está dispensada do demissional se existir um exame admissional, periódico ou de mudança de risco nos prazos previstos no subitem 7.5.11 da referida Norma cujo texto trazemos abaixo:
7.5.11 No exame demissional, o exame clínico deve ser realizado em até 10 (dez) dias contados do término do contrato, podendo ser dispensado caso o exame clínico ocupacional mais recente tenha sido realizado há menos de 135 (centro e trinta e cinco) dias, para as organizações graus de risco 1 e 2, e há menos de 90 dias, para as organizações graus de risco 3 e 4. |
5.2. Justa causa
A demissão por justa causa ocorre quando o empregado comete uma falta que, por sua gravidade, causa séria violação às obrigações contratuais.
Trata-se de penalidade máxima dentro da relação de emprego, que repercute negativamente nas verbas rescisórias, por isso exige cautela e avaliação criteriosa na verificação da presença dos requisitos exigidos para tal finalidade.
A CLT, em seu artigo 482, traz um rol taxativo das hipóteses que podem ensejar dispensa por justa causa, entre elas, a embriaguez habitual ou em serviço.
A redação do dispositivo sugere que uma única conduta de embriaguez no serviço poderia ensejar a rescisão por justa causa, já que a Lei não prevê a exigência em se observar uma gradação para aplicação da penalidade.
Contudo, considerando que a justa causa é uma medida extremamente severa ao empregado, é de grande importância a existência de provas robustas acerca da falta grave cometida, além de que estejam presentes alguns pressupostos, como a imediatividade da penalidade e a proporcionalidade entre a conduta faltosa e a punição.
Por outro lado, quando a embriaguez assume um caráter patológico, a doutrina e os Tribunais firmaram entendimento no sentido de afastar a justa causa, sob o argumento de que não se verifica um dos requisitos essenciais para caracterização da justa causa, que é a plena consciência dos próprios atos pelo empregado.
Assim, ciente do acometimento da doença, sempre que possível o empregador deve buscar medidas para recuperação do empregado.
6. CONSEQUÊNCIAS DO ALCOOLISMO NO AMBIENTE DE TRABALHO
O alcoolismo é uma das maiores causas de absenteísmo (ausência ou atraso habitual ao trabalho).
É também a causa de acidentes, aposentadorias e afastamento por auxílio por incapacidade temporária; traz mau exemplo e perturbação para o ambiente do trabalho, causando prejuízos à empresa e aos empregados; e aumenta a probabilidade de acidentes do trabalho.
6.1. Atrasos e ausências prolongadas
Pode ocorrer o desrespeito ao período de intervalo intrajornada, destinado à alimentação e ao descanso do empregado (almoço, “cafezinho” etc.), extrapolando os limites previstos no artigo 71 da CLT, bem como atrasos e saídas antecipadas que ocasionem o não cumprimento da jornada de trabalho de forma integral.
6.2. Comportamentos e condições pessoais alteradas
No que se refere ao comportamento do empregado, a embriaguez provoca alterações psicológicas, de humor, o indivíduo pode se apresentar confuso, desconcentrado e desajeitado, e verifica-se um aumento da agressividade.
Poderá, ainda, caracterizar-se nos aspectos atinentes à higiene pessoal e aparência.
6.3. Absenteísmo
Considera-se absenteísmo o padrão habitual de ausências do empregado ao trabalho, seja por falta, saídas ou atrasos, em geral não justificadas, ou um número significativo de atestados num período curto de tempo, em geral em decorrência do alcoolismo.
Além disso, torna-se comum e recorrente o empregado se ausentar às sextas e segundas-feiras, assim como, prolongar os feriados.
6.4. Alteração na qualidade do trabalho
O estado de embriaguez interferirá diretamente no desempenho das atividades exercidas pelo empregado, já que a ingestão de pequenas quantidades de bebida alcoólica gera problemas cognitivos, motores e de memória, reduzindo a produtividade e comprometendo a qualidade do trabalho.
6.5. Relacionamento interpessoal prejudicado
Diante do estado de embriaguez, os relacionamentos interpessoais ficam comprometidos e os conflitos no ambiente de trabalho surgem com maior intensidade. Como consequência, o empregado pode cometer atos de indisciplina e insubordinação, desrespeitando seus superiores ou colegas. Bem como, em razão de sua dependência, sentir-se inferiorizado e evitar a construção de relacionamentos no ambiente de trabalho.
7. PROCEDIMENTOS RECOMENDADOS
O procedimento recomendado para situações de embriaguez é que a empresa utilize a advertência por escrito, sendo uma para cada situação em que se constate que o empregado está embriagado.
Contudo, caso sejam recorrentes, a empresa deverá recomendar um tratamento adequado para ele. O encaminhamento é recomendado para que haja comprovação de que o empregador cumpriu sua responsabilidade por intermédio de todas as medidas cabíveis, visando à recuperação do trabalhador.
Se o empregado continuar com tal conduta após várias advertências, também será cabível a aplicação de suspensão contratual, a fim de coibir novas situações.
Além disso, causando prejuízo ou danos ao patrimônio da empresa, poderá ser processado na esfera da justiça cível e até criminal, dependendo das condutas, e responderá pelos danos causados em decorrência de sua agressividade por ingestão de bebidas alcoólicas.
8. Afastamento previdenciário
Conforme acima mencionado, no caso de atestado médico superior a 15 dias, a partir do 16° dia de afastamento, o empregado poderá ser encaminhado ao INSS, conforme prevê o artigo 75 do Decreto n° 3.048/99.
Para que o trabalhador tenha direito ao afastamento previdenciário, precisará possuir a carência de 12 meses de contribuição, de acordo com artigo 29, inciso I, do Decreto n° 3.048/99:
Art. 29. A concessão das prestações pecuniárias do Regime Geral de Previdência Social, ressalvado o disposto no art. 30, depende dos seguintes períodos de carência: I – doze contribuições mensais, nos casos de auxílio por incapacidade temporária e aposentadoria por incapacidade permanente; |
Lembrando que, desde a publicação do Parecer SEI/ME n° 16.120/2020, publicação do novo Manual da SEFIP, ficou definida que não há incidência das contribuições previdenciárias durante os 15 primeiros dias de atestado, desde novembro de 2020, tanto para o empregador (CPP, RAT/SAT e Terceiros) quanto para o empregado.
Porém, cuidado, pois essa não incidência é condicionada à concessão do auxílio por incapacidade temporária, ou seja, se ele não ficar configurado, continuará a existir a incidência.